o disco novo de gal

Uns dois anos atrás, mais ou menos, eu tuitei um negócio mais ou menos assim: “queria mandar uma cartinha pra Gal mandando ela voltar a ser o que era”.

“Ser o que era” era voltar a ser mais ou menos assim:


Óbvio que eu não me referia ao corpo nem muito menos à vestimenta. Mas a experimentar, se jogar, cantar com tesão, arriscar. Aí, quando eu soube que Caetano resolveu produzir de novo um disco dela, me animei muito. Pensei “pronto, é agora, Caetano vai acordar Gal pra Jesus”. Quando soube que eles classificavam o disco como “experimental”, fiquei mais ansioso ainda. Geralmente “experimental” é uma palavra pra se ter muito medo, quase sempre que a galera diz que tá experimentando é pra justificar que o resultado vai ser uma grande merda. Mas não no caso de Gal, todas as vezes em que ela “experimentou”, saiu algo genial (o mesmo vale pra Caetano).

PORÉM CONTUDO TODAVIA, quando ouvi finalmente as cinco faixas do disco liberadas até agora, vi que a tão alardeada experimentação ficou apenas pra Caetano, na música e nos arranjos. Gal canta coisas como “neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz” da mesma forma que canta “fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho”: de forma arrastada e preguiçosa. As duas frases dessas duas músicas, no fundo, nem são tão diferentes assim no que querem dizer, mas a forma é. E Gal canta Neguinho como se fosse um standard da MPB. E ela cantando assim não há barulhitos eletrônicos e autotune que dê jeito.

Caetano até tentou dar umas cutucadas pra ver se alguma coisa acontecia. Em Cara do Mundo, ele escreve assim: cara do mundo, cara de peixe-boi / cara de tudo, cara do que já foi. Antes da vírgula, é o que Gal era. Depois da vírgula, o que ela é agora. Mas Gal nem se liga, canta tudo flat, como diz minha miguxa Mariana. Só que, pra Mari, isso é lindo. Pra mim, é um horror. Quando eu ouvi Neguinho, comentei com um amigo: “eu consigo VER ela lendo essa letra”. Um dia depois, lá tava Gal no Fantástico:


Ninguém imagina que Gal, beirando os 70 anos, vai sair correndo pelo palco. Também não acho que ter a música decorada seja, necessariamente, sinal de domínio da mesma. Mas que, pra Gal, isso é um sintoma, é, sim. Lembro quando ela foi no programa do Jô, uns 10 anos atrás, e Jô pediu pra ela cantar uma música do disco que ela estava lançando na época. Gal não sabia. Nenhuma. Não tinha decorado. Esse desinteresse em aprender o que ela canta fica evidente na voz dela. Falta tesão.

No começo da semana, Marcus Preto, da Folha, fez uma matéria com Caetano e Gal sobre o disco. Gal fala que “não teve contato nenhum com a feitura do disco. Caetano fez tudo”. O negócio é tão sério que ela chegou a confundir Marcus Preto com Kassin, produtor do disco. A desculpa dada pelos dois, Caetano e Gal, é que Gal “só canta” no disco, o disco na verdade é de Caetano. Mas, se é pra cantar, custa se apropriar das músicas?

Na mesma matéria da Folha, Caetano fala que “a interpretação dela tem mais a ver com emissão [técnica] do que com intenção. E isso é crucial para os sonhos de uma música composta com sons eletrônicos”. Mas não foi sempre assim, basta ouvir os primeiros cinco discos de Gal. Até uma bobagem como Cabelo ela parecia cantar com vontade. Mas, das homenagens a Tom Jobim e acústicos MTV pra cá, Gal canta se arrastando.

Numa música do disco, Recanto Escuro, Caetano escreve e Gal canta:

Eu chego às portas da cidade 
E nada procuro fazer 
Espero, nem feliz nem gaia 
Acontecer 
(…)
Coisas sagradas permanecem 
Nem o Demo as pode abalar 

É uma pena que o Demo não abale a voz sagrada de Gal. Obriga a gente a concordar com (o hoje clichê de) Geraldo Vandré: quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

EPÍLOGO

Trechos da reação virtual de dois amigos ao ouvir Neguinho:

Pedro:
eu queria tanto gritar GAL VOLTOOOOOOOU
TANTO
com a previa de neguinho eu pirei
alias ainda acho q musica ok ate
mas meio extensa demais
e o trecho da tv de plasma é A CARA da pitty

Fábio
hahahaha podia entrar um sample de PENSE FALE COMPRE VEJA OU-SA-DIA

UPDATE (11/01/2012)

Preciso me retratar. Escrevi esse post há mais de um mês, quando só cinco músicas tinham sido lançadas na Rádio UOL (Recanto Escuro, Cara do Mundo, Autotune Autoerótico, Neguinho e uma outra que não consigo lembrar agora). Minhas primeiras impressões foram essas mesmas aí de cima. Minha impressão sobre Gal cantando também não mudou muito depois de ver as apresentações dela com Caetano no Fantástico, no Jô e no Altas Horas: em todas ela lê as letras, seja no papel ou num teleprompter. Mas o disco é bom, muito bom.

O fato de não ter gostado dele quando ouvi as músicas avulsas faz o meu gostar tardio ser ainda maior. Porque Recanto é, pra mim, daquele tipo de obra que tem que ser revisitada algumas vezes pra poder gostar. Mas desde o começo já existia algo muito forte ali, tanto pela minha reação de quase raiva ao terminar de ouvir as músicas, quanto pela necessidade de voltar a ouvi-las. É engraçado porque eu tenho essa reação com determinadas pessoas também. Em umas três ou quatro ocasiões, comecei amizades brigando com pessoas que acabaram se tornando grandes amigos. Outras tantas (ou mais) vezes, tinha uma antipatia gigante por semi-conhecidos, mas sempre queria encontrá-los de novo. De alguma forma, eu sabia que existia muita coisa boa escondida e que fariam com que até aquilo que eu não gostava inicialmente fizesse sentido. Recanto é uma coleção dessas pessoas.

Ainda não conheci todas essas pessoas; não consigo escutar o disco todo de uma vez. Mas aos poucos mais músicas vão se juntando ao círculo de amizades. Aliás, amizade é um componente extra-disco que também me faz dar mais valor a ele. Caetano se dispôs a ir até o recanto escuro de Gal, não para resgatá-la, mas pra compreender, aceitar e propor algo que fosse diferente do cool jazz e ainda assim contemplasse a Gal recolhida e materna. Dividir com a amiga os filhos e os barulhinhos criados por eles. Muito bom.