Memórias da AIDS

A minha memória mais antiga em relação à AIDS é a desse especial da Globo com Cazuza. Era um show em que ele, já muito magro e debilitado, recebia convidados pra cantar com ele. Por mais que as pessoas sorrissem muito durante o show, o clima geral era claramente de despedida. É uma memória parcialmente inventada: eu tinha 3 anos quando esse especial foi ao ar e, embora lembre dele muito claramente (da sala de casa, da TV alugada da Colortel), obviamente eu não poderia, nessa idade, entender o que era AIDS. Mas toda vez que eu leio a sigla me vêm Cazuza e esse show à memória.

Mais ou menos na mesma época em que Cazuza morreu também morreram os dois melhores amigos da minha mãe, ambos de AIDS. Ela conta que um dia estava chorando pela morte do segundo amigo (pouquíssimo tempo depois do primeiro) e eu, preocupado, falei: “mainha, você não devia mais ter amigos. Depois eles morrem e você fica aí chorando”. (Por mais bizonho que esse argumento possa parecer, era uma lógica parecida com a que médicos e governos diziam pros gays no começo dos 1980: “não quer pegar AIDS? então não faça sexo”).

Os conceitos de AIDS, morte e homossexualidade vieram juntos pra mim. Um estava atrelado ao outro na época em que os descobri, e acho que isso deve ter acontecido com muita gente que nasceu na mesma época que eu. Enquanto eu crescia e ia sendo informado das coisas do mundo, a fase do “câncer gay” na imprensa já tinha passado, mas também durante muito tempo o cuidado foi só eliminar essas duas palavras, todo o subtexto continuava o mesmo. O fato é que eu cresci, me entendi gay e no mesmo momento entendi que o sexo pra mim, então, seria algo perigoso, algo que demandaria uma proteção. Acho que vem daí o meu fascínio pelos primórdios da AIDS e pela época imediatamente anterior ao surgimento dela. Como era a época em que você não precisava se proteger do sexo? Como pode uma doença alterar tão drasticamente a forma com que as pessoas realizam uma função tão básica? Como pode uma doença interferir tanto na vida de um grupo específico de pessoas – veja bem, tô dizendo na vida. Doenças tão ou mais mortais existiram e existem, mas nenhuma teve um impacto social tão grande quanto a AIDS entre as pessoas que a têm e as que não têm.

Tudo isso foi pra dizer que, durante essa semana de datas comemorativas da AIDS, ela vai ser assunto de alguns posts, principalmente como a mídia jornalística tratou o surgimento da doença e como o cinema da época a representava/retratava. Escrevo assim em tom de aviso porque fico meio impressionado em ver como esse assunto às vezes parece ser mais tabu hoje do que nos anos 80/90. A ~grande mídia~ (e a pequena também) deixou de se interessar em falar disso; se a gente for se guiar pelos jornais, a última pessoa que morreu de AIDS foi Sandra Bréa. Depois disso nunca mais vi nenhuma notícia relacionando a morte de alguém à AIDS, a não ser em estatística – é mais fácil falar de número do que de gente, torna a coisa mais distante. Mas mesmo as estatísticas são cada vez mais difíceis de encontrar. Antes de escrever isso, dei um Google pra saber qual a sobrevida média das pessoas que têm HIV mas que estão sob tratamento. Essa informação simplesmente não existe em nenhum dos sites brasileiros sobre AIDS, seja do Governo ou não. Obviamente, esse dado deve variar caso a caso, mas não existe uma média? Leio que virou “doença crônica”, mas isso significa o quê exatamente? Não mata mais? Leio também que os jovens gays estão cada vez mais fazendo sexo sem camisinha. É óbvio, depois é só tomar um remédio que tudo fica bem, não é? Imagino que a falta de informações oficiais sobre o que acontece com alguém com HIV mas medicado seja uma forma de proteger as pessoas que já têm AIDS (“você tem em média tantos anos de vida pela frente” é algo que ninguém quer ouvir), mas à custa de sonegação de informação? Me parece a mesma estratégia desastrosa de campanha anti-drogas.

Para além de tudo isso, fico espantado em ver como a maioria dos homossexuais (os que eu conheço, pelo menos) simplesmente não fala disso, acha baixo astral. Obviamente não é o assunto mais divertido do mundo, mas pra entender o que é ser gay hoje (por que temos alguns direitos e deixamos de ter outros tantos, por que somos olhados assim ou assado) é preciso passar pela história da AIDS. E talvez eu seja um tanto Pollyanna, mas olhando em retrospecto pra tragédia na relação específica entre AIDS & homossexuais eu consigo achar alguns pontos que, se não são exatamente felizes, são no mínimo bonitos: houve na ~comunidade gay~ um senso de união, de luta, (pela) dignidade e visibilidade. E que rendeu frutos aproveitados tanto por heterossexuais com AIDS quanto por homossexuais sem AIDS. (Mas não consigo achar nenhum ponto positivo na persistência da doença e na ausência dela no plano midiático: me parece e, pelo que eu vejo e leio, é um consenso entre quem estuda o assunto, que a saída da AIDS dos jornais está intimamente ligada ao avanço dela em direção à população distante da classe média)

Um exemplo dessa tal beleza que eu encontro na tragédia é a história do ACT UP, que é contada em Como Sobreviver à Praga. Não vou me estender muito nessa história específica porque prefiro que você veja logo o filme, se não viu ainda. Tá nos Cine Torrent da vida e tá passando também na HBO Brasil. Mas, em resumo, por mais avanços que pessoas como Harvey Milk tenham conseguido, o filme mostra como faltava muito (e talvez ainda falte bastante) pra que as pessoas enxergassem gay como gente.

E aí eu termino esse post com minhas clássicas escavações audiovisuais. São duas matérias da década de 80. Uma é talvez a primeira matéria sobre AIDS exibida na televisão brasileira. Passou no Fantástico, em 1983, época em que a sigla ainda era soletrada (á-í-dê-ésse). Notem especialmente a trilha tirada de algum filme de terror dos anos 50.

A segunda matéria é na verdade um programa inteiro da Manchete de 1987. Não consegui descobrir que programa era esse, mas era uma espécie de Globo Reporter, inclusive no estilo “homossexuais, quem são, onde encontrá-los, como eles vivem com AIDS?”. Porém, por mais que a repórter/apresentadora do programa recorra aos artifícios mais escrotos do jornalismo (“como você se sente sabendo que seu companheiro vai morrer?”), há uma nítida preocupação em humanizar os homossexuais. Sai a trilha de filme de monstro do Fantástico e entra o off da repórter narrando uma balada: “na boate, os homossexuais fazem as mesmas coisas que os heterossexuais: dançam, bebem e paqueram”. Mas o mais incrível é que os personagens principais do programa, um casal, nunca caem nas armadilhas da repórter pra produzir uma imagem espetaculosa. Não choram, têm um profundo entendimento da vida e da morte e do tipo de morte que eles terão e, principalmente, da relação deles. É lindo.

(Não sei se pega bem achar humor em algo assim, mas gosto muito também da parte em que ela pergunta prum transeunte velhinho: “o senhor tem homossexuais em casa?”. “Homo o quê?”. “Filho bicha, o senhor tem?”)



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