Clube de Compras Dallas

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Clube de Compras Dallas tem esse título inusitado, mas em tudo dentro e ao redor do filme está estampada a sigla AIDS. É um filme sobre AIDS, mas é também um filme sobre a vontade de viver, nos dizem o trailer, o cartaz, os discursos de agradecimento dos atores na temporada de prêmios.
Assistindo somente ao filme, achei difícil enxergar de onde vem essa vida toda.
Aqui, Matthew McConaughey interpreta pela quinquagésima vez um macho americano com sotaque texano, dessa vez acrescido de um bigode, decrescido de mais ou menos 30 kg, e localizado no meio da década de 1980. Este aqui é um personagem real chamado Ron Woodroof, mas tudo que saberemos sobre ele está nos primeiros minutos do filme. Esses minutos dizem muito mais sobre as intenções do próprio filme do que sobre o personagem principal: na primeira cena do filme, Woodroof faz sexo na penumbra com duas mulheres nos bastidores de um rodeio. Pelas frestas de uma porteira, acabamos enxergando mais o cowboy que é derrotado pelo touro do que o sexo propriamente dito.
Ou seja, de cara o filme já nos joga no reino das metáforas simplórias e perigosas, sobre as quais Susan Sontag discorreu 25 anos atrás em Aids e suas metáforas. Peço licença para citar algumas linhas de Sontag:
O comportamento perigoso que produz a AIDS é encarado como algo mais do que fraqueza. É irresponsabilidade, delinquência – o doente é viciado em substâncias ilegais, ou sua sexualidade é considerada divergente.
A transmissão sexual da doença, encarada pela maioria das pessoas como uma calamidade da qual a própria vítima é culpada, é mais censurada do que as outras – particularmente porque a aids é vista como uma doença causada não apenas pelos excessos sexuais, mas também pela perversão sexual. […] Uma doença infecciosa cuja principal forma de transmissão é sexual necessariamente expõe ao perigo aqueles que são sexualmente mais ativos – e torna-se fácil encará-la como um castigo dirigido àquela atividade. […] não apenas a promiscuidade é considerada perigosa, mas também uma determinada “prática” sexual tida como antinatural.
“Subiu em cima do boi porque quis, sabia que a queda era inevitável”, o filme parece dizer logo na abertura.
O livro vai mais além – e o filme também, embora em direção oposta. Sontag, tanto neste livro quanto em seu livro-irmão anterior, Doença como Metáfora, desconstroi as metáforas romantizantes atreladas a doenças como a sífilis e a tuberculose que, suposta e respectivamente, causariam intensa atividade mental e emocional. Clube de Compras Dallas ousa construir seu próprio mito para a AIDS: ela causa intensa atividade comercial.
Depois do sexo bestial, somos apresentados rapidamente à vida de Ron Woodroof antes de este descobrir que está doente. Ele é o que os americanos “vencedores” chamariam de white trash: tem um sub-emprego como eletricista, faz bicos não muito claros relacionados a rodeios, mora num trailer sujo repleto de garrafas vazias de cerveja e é extremamente ignorante e preconceituoso. Também não há sinal de família ou de amigos que não sejam colegas de trabalho. Após o diagnóstico do HIV, surgirá em Woodroof um surpreendente tino comercial e ele montará um modelo de negócios inovador, complexo e bem sucedido: o tal Clube de Compras Dallas. O personagem encontra brechas na lei americana para contrabandear remédios não aprovados pela FDA (órgão americano regulador de medicamentos) através do Clube. Os pacientes pagam uma mensalidade pela associação ao Clube, recebendo os remédios “de brinde”, e não pelos próprios remédios. Em pouco tempo, o negócio se torna tão lucrativo que Woodroof viaja ao redor do mundo tratando de negócios e biomedicina com empresários e cientistas.
Mas espere! Não é só isso! Assistindo ao Clube de Compras Dallas você também verá: a transformação interna de Woodroof, de preconceituoso para um ser tolerante, através de viradas de roteiro enxertadas matematicamente ao longo de sua duração. Para que isso possa acontecer, o filme apresenta mais dois personagens ainda mais subdesenvolvidos que o protagonista. O primeiro é uma médica interpretada por Jennifer Garner, que é apenas e exatamente isso: uma médica interpretada por Jennifer Garner. Não há registro de que ela tenha família, amigos, namorado, vida social, nada. Mas sabemos que ela é boa moça e servirá como interesse romântico impossível do personagem principal, não sem antes travar duas ou três discussões com ele e ser alvo de seu preconceito: ele assume que, por ela ser mulher, é uma enfermeira, não uma médica.
Já a travesti Rayon é, de longe, o melhor personagem do filme, mas os méritos são todos da interpretação de Jared Leto. Leto constroi uma figura melancólica, mas não trágica, cujo apreço pela Beleza me parece um motivo genuíno para viver. O roteiro esboça algum interesse por ela, já que Rayon é a única do trio protagonista que terá uma cena (e quando eu digo “uma cena” é uma mesmo) em que algo próximo de uma questão pessoal e não-relacionada à doença se apresenta. Mas, durante todo o resto do filme, a função de Rayon é uma só: formar com Woodroof uma dupla do tipo Estranho Casal — dois estranhos que se odeiam vão deixar as diferenças de lado em prol de algo maior e acabarão descobrindo que gostam um do outro.
Talvez minha vontade de saber e sentir algo por esses personagens não fosse tão grande se o filme investisse em uma análise, retrato ou mesmo panorama do ambiente riquíssimo no qual o filme está inserido: estamos falando dos anos 1980, da Era Reagan, de uma das maiores epidemias da História, que trouxe consigo imensas mudanças sociais e comportamentais para os vivos e levou embora 30 milhões de pessoas. O filme pouco ou nada tangencia essas questões e, apesar de se pretender realista, nem rigor histórico consegue ter. No início do filme, com um letreiro 1985, Woodroof comenta comenta com um amigo que os médicos disseram que ele está com “um tal de vírus HIV”, que só seria assim denominado no ano seguinte; a televisão da sala da médica Jennifer Garner é igualzinha à que minha avó comprou pro quarto dela em 2002; por fim, a magreza está reservada apenas aos personagens principais (e que têm acesso facilitado aos remédios). Por duas ou três vezes, o filme mostra uma fila de doentes esperando para se associar ao Clube de Compras Dallas: todos com uma aparência saudabilíssima.
É uma tristeza que, com um tema tão rico, tudo o que Clube de Compras Dallas consiga fazer seja um libelo a favor do livre comércio. Mas talvez isso explique o sucesso que o filme tem feito nesta temporada de premiações.

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